AIR KING A-725
Publicado em 04 de maio de 2025




Costumo começar os relatos das restaurações falando um pouco sobre a história dos equipamentos, mas dessa vez farei diferente, pois acredito que contar a história de como esse gravador de fio chegou até mim seja mais interessante.
Encontrei esse Air King à venda em um leilão na plataforma Ebay e o que me chamou a atenção foi o anúncio da vendedora, que mencionava a vontade dela de recuperar as gravações contidas em alguns carreteis que acompanhavam o gravador. Segundo ela, o equipamento havia pertencido ao seu pai e seria prazeroso poder ouvir as antigas gravações realizadas por ele.
Enviei uma mensagem demonstrando interesse e oferecendo minha ajuda para recuperar as gravações.
Mas a princípio não deu certo. O alto custo do envio, somado ao valor do equipamento, inviabilizava a compra. Por fim, o leilão terminou cerca de uma semana depois sem nenhum outro interessado. E para minha surpresa a vendedora me enviou uma nova mensagem com a seguinte oferta: ela estava disposta a doar o gravador para mim e ainda ajudar com parte dos custos do envio. Tudo isso sem me pedir nada em troca.
Diante da oferta inusitada e ao mesmo tempo tão generosa, eu só pude aceitar me comprometendo a de fato recuperar as gravações contidas nos carreteis. Eu já havia feito um trabalho semelhante quando digitalizei alguns carreteis que recebi junto com um gravador de fio Wireway. Mas confesso que rolou aquele frio na barriga só de pensar que algo poderia dar errado. Porém, a vendedora era realmente uma pessoa muito gentil e em nenhum momento mencionou qualquer obrigação da minha contrapartida. A intenção dela era apenas dar um destino para gravador e, a partir das nossas conversas, acredito que ela tenha sentido que seria um bom caminho.
Negócio feito! Depois de algumas semanas o Air King chegou em casa. A primeira coisa que fiz foi sem dúvida começar pela recuperação das gravações. Eram quatro carreteis no total. Mas havia uma grande quantidade de fio enrolado no próprio carretel do gravador. Essa foi a parte mais crítica, pois o carretel estava emperrado e tive que desmontar a máquina para limpar e lubrificar. Como ainda não sabia qual era o estado de funcionamento do gravador, preferi não arriscar ligá-lo antes de realizar alguns procedimentos básicos da restauração. Mas como minha inteção era recuperar as gravações o quanto antes, optei por rebobinar todo o fio do carretel manualmente.








Os fios usados nesses gravadores são bastante finos e embaraçam com facilidade. Então o processo exigiu paciência e cuidado. Uma coisa interessante é que quando os fios arrebentam, é possível dar um nó e emendá-los novamente. Isso aconteceu em alguns momentos. Aqui tem uma dica de como dar o nó.
A digitalização do material foi mais simples, utilizei um Webster Chicago que já havia restaurado tempos atrás. Soldei um conector na saída da pré-amplificação da cabeça e liguei com um cabo na entrada de uma interface de áudio. A gravação foi feita no computador usando um software de áudio. Além do material na íntegra, também editei trechos, cortando os silêncios e removendo alguns ruídos na gravação. Quando enviei os arquivos para a antiga dona, ela ficou extremamente feliz!
As gravações eram conversas entre o pai e tio dela, que na época moravam em cidades distantes. Eles trocavam mensagens em áudio por meio do envio dos carreteis pelo correio. Ouvindo as antigas conversas, ela fez descobertas incríveis, inclusive que o pai tinha um sotaque diferente quando era mais novo. Fiquei muito contente em poder ajudar no resgate dessas memórias. Missão cumprida!
Toda essa história aconteceu em 2021. Depois disso, o Air King acabou entrando na fila de espera das restaurações. Somente no final de 2024 consegui retomar o projeto e de fato iniciar a restauração do gravador.
Comecei o trabalho desmontando todo o mecanismo: chaves, braços, eixos, polias e inclusive o motor. Foi realizada uma limpeza geral para remover toda a lubrificação velha que costuma secar e grudar nas peças. Apliquei óleo e graxa nova. É bem comum as borrachas das polias ressecarem em equipamentos dessa idade, mas por sorte as desse gravador estavam em boas condições, o que poupou o trabalho de recondicionamento.
A revisão da parte eletrônica começou com a tradicional troca dos capacitores a óleo e eletrolíticos. Esses dois tipos são bem suscetíveis a ação do tempo e é bem recomendável trocá-los. No caso dos capacitores a óleo eu substituo por poliéster. Como esse gravador de fio é um equipamento meio “rudimentar”, na minha opinião não justifica investir em capacitores muito elaborados, como aqueles chamados de audio grade.
Os antigos resistores de carbono também foram substituídos por resistores novos. Através das medições com o multímetro foi possível notar que os valores das resistências estavam bastante fora dos valores nominais indicados pelo código de cor.
Um fato interessante sobre o circuito desse Air King é que ele é do tipo "hot-chassis", o que chamamos aqui no Brasil de rabo quente. Neste tipo de circuito não há um transformador responsável por isolar o equipamento da rede elétrica. Dessa forma, é preciso atenção durante a manutenção, pois qualquer vacilo é como se você estivesse enfiando dois dedos na tomada. Mas com aquele cuidado habitual que se deve ter com circuitos valvulados é possível fazer a manutenção sem problemas.
Para finalizar a restauração da parte eletrônica foi necessário recondicionar o alto-falante, uma vez que o cone já estava se deteriorando. Com a parte eletrônica pronta, pude iniciar os testes de funcionamento. O mecanismo rodou bem, o transporte do fio estava acontecendo corretamente. Mas o som estava saindo baixo e meio distorcido.
Poderia ser um problema na amplificação ou na reprodução da cabeça. Como não encontrei o esquema elétrico do gravador, segui o processo de tentativa e erro. A primeira coisa que testei foi a amplificação, que parecia funcionar normalmente, já que conectando um sinal de linha na entrada Phono/Radio o som era reproduzido normalmente pelo alto-falante do gravador. Então uma outra possibilidade seria a saída de sinal da cabeça.
Inicialmente não considerei que a cabeça poderia estar com defeito, por algum motivo estava com a ideia da robustez desses equipamentos em mente. Mas conversando com o amigo Sidney, do Galpão do Rádio, ele me alertou que o problema poderia ser sim a cabeça e me deu a ideia de testar uma cabeça de outro gravador de fio no lugar. Algo simples, mas que não havia pensado. Por sorte, a cabeça do gravador Wireway que tenho aqui possuí a mesma dimensão e pinagem da cabeça do Air King, de modo que foi muito simples tirar uma cabeça e colocar a outra no lugar.
Bingo! O som veio alto e bem definido.
Se por um lado rolou um alívio de encontrar o defeito, por outro sabia que consertar a cabeça não seria fácil. Medindo os terminais havia continuidade entre os pinos 2 e 3, mas entre o 3 e 4 não havia continuidade e nem resistência. Provavelmente a bobina interna estava aberta. Tentei abrir a cabeça para descobrir se havia conserto, mas este modelo é todo blindado, então foi impossível não danificar.
A essa altura já estava conformado que o caminho seria conseguir outra cabeça. Entretanto, encontrar peças para estes gravadores não é uma tarefa fácil, pois estes equipamentos não são tão comuns hoje em dia.





Mas essa coisa da restauração tem um pouco de sorte envolvida e acabei encontrando duas cabeças semelhantes à venda na internet. Elas estavam na Austrália e o vendedor não garantia o funcionamento, mas se dispôs a fazer o reembolso caso não funcionassem.
Após algumas semanas de espera as cabeças chegaram. A partir das medições com o multímetro uma delas parecia estar funcionando. Havia continuidade entre os pinos 2 e 3 e entre o 3 e 4 uma resistêcia de 530 ohms. Instalei a cabeça no gravador e funcionou perfeitamente, o som saiu alto e bem definido.
Então agora faltava só o acabamento. Praticamente todos equipamentos de maleta que restauro, acabo optando por reencapar com um novo material mais resistente. Conto com a experiência e parceria do Álvaro da AMS Custom Cases para fazer este trabalho.
Além de reencapar a maleta, foi necessário aplicar um novo banho de níquel nas ferragens que estavam bastante oxidadas. Na tela do alto-falante e nas pequenas grades circulares que protegem as entradas de ar, optei por aplicar uma tinha preta fosca.
Para finalizar a maleta, reproduzi o folheto interno que contém algumas orientações gerais. Não foi possível aproveitar o folheto original, pois no processo de remover o tecido e as ferragens, as chapas do fundo e da tampa da maleta ficaram bastante danificadas. Então foram substituídas por chapas de compensado mais espessas e resistentes.
O toque final para completar a máquina foi conseguir um microfone. Encontrei um microfone de cristal Electro-voice, Model 915, que me pareceu bastante similar aos microfones que aparecem junto com o Air King em fotos que encontrei pela internet. O Electro-voice encaixou perfeitamente na rosca do suporte que fica na parte interna da tampa. Porém, não estava funcionando.
Esses antigos microfones de cristal são sensíveis a ação tempo, então é bem comum que eles não estejam funcionando. Uma solução é adaptar uma nova cápsula. Como tive um bom resultado fazendo esse procedimento no microfone do Webster Chicago, segui o mesmo caminho.
O Sidney generosamente me cedeu um antigo fone de ouvido de cristal que estava funcionando. Removi a parte da frente do fone com cuidado para não danificar o fino diafragma de alumínio, e o adaptei dentro do corpo do microfone. Substituí o cabo e instalei um conector que encaixava na entrada do gravador. Agora sim estava tudo pronto!
Fiz um primeiro vídeo com uma gravação de voz para testar o microfone. Depois um segundo vídeo com uma gravação utilizando a entrada Phono/Radio. A ideia foi simular uma situação da época, gravando umas música como se estivesse sendo recebida pelo rádio. Para essa brincadeira, escolhi a música A Saudade Mata a Gente, interpretada por Dick Farney. A canção foi lançada em 1948, mesmo ano de fabricação desse Air King A-725.
